quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Marginais, de Evel Rocha.

Resenha: Marginais, de Evel Rocha. 

De Cabo Verde à universalidade


Sou estudante de Letras e farei desse blog um exercício prático de escrita, e também uma ferramenta para compartilhar um pouco das maravilhas literárias que me foram apresentadas, com grata surpresa, no decorrer do anos da graduação.
No segundo semestre de 2015, uma das disciplinas que frequentei foi a de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa III, ministrado pela Profa. Doutora Simone Caputo Gomes, nesse curso a professora apresentou a cultura e literatura cabo verdiana, o país africano que tanto bebe de nossa literatura,  em contra-partida também apresenta uma rica cultura e belas obras literárias, como a que me enriqueceu e me motivou a escrever esta resenha.


Marginais é um livro que possui a intervenção de dois narradores, o principal, Sérgio ‘Pitboy’, um marginalizado e autor ficcional do livro que narra a obra na quase integralidade do livro e um engenheiro que recebe os manucristos para publicá-los (limpa termos de baixo calão e exclui trechos “demasiado realistas”).
Nesse romance, Evel Rocha narra os acontecimentos na vida de Sergio Pitboy, e outras personagens que compõe Espargos, na Ilha do Sal (uma das dez ilhas de Cabo Verde), como Fusco, Mirna, Lela Magreza, Pianista, Beto Vesgo, entre outros, também marginais e outros habitantes da ilha como a professora Izilda, o Dr. Apolinário (advogado e político), etc.
São muitas personagens e muitos temas abordados na obra, que chocam, mas que conquistam e atraem a simpatia do leitor por Sérgio e sua “gente”. O autor Evel Rocha em entrevista à Revista Educação e Linguagens (p. 13) fez a seguinte observação sobre o seu livro Marginais:
Como o próprio título diz, é um livro de marginais, de marginalizados. Marginalizados talvez fosse o título mais acertado. A ideia era fazer um retrato social da Ilha do Sal em particular e de Cabo Verde na generalidade. Era trazer à tona temas que são tabus, que as pessoas têm medo de tocar, como a homossexualidade, a delinquência, a monoparentalidade, a poligamia e as situações do dia a dia de injustiças.

E a obra realmente consegue abranger os tabus enumerados e ainda outros, com maior ou menor destaque, como incesto, estupros, prostituição, exploração da fé, tráfico, alcoolismo, consumo de drogas, reforço, entre outros. A narrativa é feita através de capítulos curtos, que dão fluidez à leitura, podendo atingir ao seu público-alvo “No caso de Marginais, foi um livro escrito para as massas, para o povo, para as pessoas comuns. Essa era a intenção do livro. ...” (ROCHA, p. 12).
Para colaborar com essa dinâmica, em muitos capítulos de um parágrafo para outro o narrador troca de personagens e histórias, que acabam sendo "pílulas" na construção das personagens, que só podem ser compreendidas com a leitura integral da obra. Escreve o Sergio Pitboy: “A minha vida sempre foi um retalho de recordações, um acumular de horrores” (p. 62).
É a partir desses retalhos/fragmentos que a escrita vai sendo alimentada, e dessa maneira que chega ao leitor a história de Sérgio e do coletivo de marginalizados, é preciso dar voz a todos, a essa classe não representada, que transita entre as fronteiras da sociedade, ou como diz Sérgio ao engenheiro “Aqui, procuro descrever os dois mundos onde vivi comprimido: o mundo da pobreza e o dos  abastados, como alguns o chamam, mas para mim são o mundo dos exploradores e o dos explorados”. (Marginais, p. 13)
O leitor poderá reconhecer no texto o discurso que já vem de uma tradição da denúncia das injustiças sociais, como aponta Lugarinho, em Capitães de Areia, Capão Pecado, entre outros, aos quais podemos juntar fundamentalmente Kafka e Vidas Secas de Graciliano Ramos, o sujeito dessas sociedades é segregado na alienação do trabalho ou na falta de trabalho, sem o mínimo subsídio para as condições básicas de existência e sem voz ou representatividade para reivindicar.  No contexto de Marginais, com a Globalização, a  Ilha do Sal parece se desenvolver, recebe muitos turistas, de variados continentes, abre negócios, mas as benesses chegam apenas para os exploradores, enquanto os pobres tem menos oportunidades.
O emprego aumentava, porém, os filhos da terra dificilmente conseguiam um bom trabalho. Dizia-se que Sal era boa madrasta, mas uma péssima mãe [...] Tornámo-nos indolentes, enveredámos pela cultura dos miseráveis, aceitámos o credo imposto que o melhor era lutar pelo pão de cada dia e, se não houvesse, benzer a boca antes de dormir. Porém, eu, nós, os da geração rasca, os marginalizados da periferia, rejeitamos em absoluto essa condição a que os nossos pais foram relegados e somos forçados a enveredar para um caminho totalmente contrário, porém arriscado e perverso: o caminho da delinquência. (p. 89)
E nesse mundo pelo qual Sergio transita, há uma enxurrada de violência, a narrativa expôe muito da degradação do ser humano, que consegue ser cruel fisicamente, seja pela exploração sexual de adultos e crianças, há diversas casas noturnas e as jovens começam cedo no ofício para ajudar em casa ou sobreviver sozinhas, muitas vezes o desencadeamento dá-se com o abuso em casa de pais ou irmãos, por isso é recorrente vermos a evasão familiar. Os policiais são indolentes e abusam dos presos (Sergio testemunha o estupro a Pianista), com inação das autoridades. Mas a violência também acontece no plano psicológico, Sergio, em uma iniciativa de democracia da professora, é o mais votado para representar a turma de escola, mas a professora contrariada manobra para deixar como representante a sua aluna favorita em lugar do parvo rebelde que senta ao fundo da escola intervindo indevidamente, enfim, o recado, é necessário que não se dê voz a esse sujeito.
Essa é a atmosfera de criação desses sujeitos, expostos  à violência, a uma criação sem supervisão, pois os pais (muitas as mães largadas pelos maridos) devido à carga de trabalho mal remunerada não conseguem conciliar totalmente a criação dos filhos com o quebra-cabeças que é ganhar o alimento para a sobrevivência.
Mario Cesar Lugarinho em ensaio para a Revista Via Atlântica vai dizer “O reconhecimento passa pela manifestação de caracteres físicos, pela iniciação sexual e suas práticas e, também, pelo desconhecimento de regras e desafios aos parâmetros sociais burgueses que organizam as cidades modernas.”
Por fim, o leitor se deparará na leitura que esse trânsito, essa liberdade, despirá alguns preconceitos e em certos momentos vislumbra-se uma solidariedade entre os fracos, que permitem uma resistência, essa resistência que será chave no livro, pois Sérgio resiste, rebela-se, está sempre inconformado com um mundo que não faz sentido, mas que é o mundo real, há a degradação da saúde, a degradação física e  desesperança, mas persiste na obra, assim como vemos em Pedro Bala, de  Capitães de Areia, uma integridade sendo construída no caráter do protogonista de Marginais .
Os seus sonhos vão sendo feitos e desfeitos, como se um Deus Ex-Machina às avessas, agisse no último momento para impedir o sucesso de Sérgio, e assim em sua desilusão nutri-lo com mais elementos para a construção dessa obra, que é o livro, segundo o engenheiro, que todo o jovem cabo-verdiano gostaria de ter escrito.
Ao leitor desse romance cabe sentir a cada linha a angústia de Sergio, torcer pelas personagens, chocar-se com os acontecimentos hiperbólicos ou não e refletir, desde as primeiras páginas com o conselho que o narrador/engenheiro dá para o leitor do romance Marginais:
Ao ler estas páginas, caro leitor, espero que compreenda este livro não como algo que conduz à destruição mas, antes, como algo que conduz à redenção. Cabe a cada um de nós, membro desta sociedade, encontrar a solução para ajudarmos a nós mesmos e àqueles que passam por momentos mais difíceis (Marginais, p. 12)

Referências bibliográficas:
LUGARINHO, Mário Cesar. “Em Cabo Verde, os Marginais, de Evel Rocha: justiça social e gênero”. In: Via Atlântica, São Paulo, N. 22, Dez/2012.
ROCHA,Evel. Marginais. Gráfica da Praia, 2010.
ROCHA,Evel. in Revista Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 4, n. 7, jul./dez. 2015. Disponível em: http://www.fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/viewFile/838/487. Acessado em 06/11/2015.

Um comentário:

  1. Eu fico muito feliz por saber que a obra do escritor Evel Rocha, neste caso específico “ os Marginais” está sendo lida e estudada com profundidade. A obra de Evel Rocha desponta cada vez mais fundamental na literatura Portugal muito mais de ser obra de um escritor Caboverdiano. Evel Rocha não tem medo de tratar na sua escrita de temas bicudos e o faz com um olhar profundo e terno sobre o outro e embranha-se nos dramas humanos como modo de retratar de forma fidedigna a alma e o a essência da Caboverdianidade. Na sua obra o espantoso é o seu olhar atento e sua captação perspicaz dos problemas actuais da sociedade Caboverdiana. Mas cuidado por Evel Rocha sendo um salense, percebemos nos seus escritos que é um autor universal. Cada vez mais. Eu, um admirador da sua escrita desde sempre, desejo-lhe os maiores sucessos. Sempre que leio Evel Rocha, parece-me os seus escritos, haver influência de Julio Cortazar no modo de narrar

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